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19/07/2024 Congresso SOTER Entrega Prêmio Soter "João Batista Libanio" para Marcelo Barros
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CONFERÊNCIA

Para ajudar o dia a clarear[1]

Queridas irmãs e irmãos, 

Nunca poderia imaginar estar aqui recebendo esse prêmio tão significativo, prêmio que leva o nome do saudoso e querido mestre Libânio e que já foi dado a teólogos e mestres famosos, como Leonardo Boff, Carlos Mesters e no ano passado, estive aqui como um dos representantes que conferia o prêmio ao querido amigo José Oscar Beozzo.

Ao me outorgar a honra de receber esse prêmio, certamente, vocês quiseram antecipar um presente pelos meus 80 anos, que farei em novembro, mas também prestigiar o modo de ligar teologia e pastoral na inserção social e política com as classes populares que, desde os anos 1970, eu procuro viver. Uma teologia em forma de profecia. Uma profecia em forma de Teologia.

Para mim é muito significativo o fato de receber esse prêmio aqui e agora, por acaso nessa data em que a Igreja celebra a memória de São Bento, pai dos monges e monjas do Ocidente, cuja Regra prometi seguir durante toda a minha vida, mesmo se, nesses últimos anos, a vivo na diáspora e em uma espécie de monaquismo itinerante, no qual o meu mosteiro é o mundo do povo empobrecido e das comunidades da caminhada.

Nessa noite, recebo esse prêmio como uma espécie de prolongamento daquela noite de 7 de agosto de 1999 em que visitei Dom Helder Camara pela última vez na sacristia da Igreja das Fronteiras, senti que era a última vez em que estávamos juntos, lhe pedi uma palavra de vida e depois de longo silêncio e já com dificuldade de falar, ele me sussurrou:

- Não deixe cair a profecia.

Desde aquele primeiro momento, senti que recebia essa palavra não apenas para mim mesmo, mas em nome de todos e todas vocês que acompanham essa caminhada de libertação. Alguns me acompanharam quase desde minha adolescência, como meus professores de Teologia. Recordo todos eles na pessoa do querido Eduardo Hoornaert que sempre encontro com energia renovada em Salvador. Ele me faz recordar de tantos irmãos e irmãs com os quais convivemos nos diversos grupos da caminhada. 

A profecia bíblica é sempre comunitária. Já era na época antiga e hoje, esse caráter comunitário ainda é mais importante. Por isso, considero que o prêmio não é só a mim como pessoa, mas a todo o coletivo que forma a caminhada profética das comunidades cristãs de base, o grupo Emaús do qual há 40 anos faço parte e foi onde conheci e convivi mais de perto com Libânio, assessorando juntos os encontros intereclesiais de Cebs dos anos 80 e 90, o CEBI do qual participei desde o primeiro momento e que nesse mês de julho está completando 45 anos. Que gratidão ao querido Carlos Mesters que, em julho de 1979, sonhava conosco o CEBI e no qual desde o começo, contamos com a profecia e a poesia da querida irmã Agostinha Vieira de Melo com a qual aprendi a ser monge na periferia do mundo e na comunhão com as pessoas mais pequeninas. Tenho em casa o caderno no qual ela anotava a sabedoria que ouvia dos mendigos e das pedintes na porta de casa e na feira do bairro de Mandacaru onde morava em João Pessoa. 

Aprendi Teologia da Libertação não na academia mas na Pastoral da Terra que completa agora 50 anos e que na época em que fui do secretariado nacional, duas vezes fui ameaçado de morte e tive a honra de ser preso pelo famoso Coronel Curió no acampamento de Ronda Alta em 1981, quando estava lá em nome da CPT para apoiar o povo acampado e ajudar o padre Arnildo Fritzen no seu diálogo difícil com o bispo da diocese.

Mas naquela época o amor do coração era mesmo o CIMI que é o irmão mais velho dessas pastorais nascidas a partir de Medellín. Com que orgulho e alegria assessorei diversas das assembleias nacionais e me tornei amigo de alguns chefes indígenas Xavante e Karajá. Hoje agradeço a Deus a amizade e a presença na minha vida do meu irmão Gildo Xukuru que me ensina a unir a espiritualidade indígena e o amor ao evangelho de Jesus.

Agradeço profundamente a Deus a graça de ter sido amigo de Mãe Stella de Oxossi e tê-la recebido duas vezes por uma semana inteira comigo no Mosteiro de Goiás e eu mesmo ter ficado na casa dela no Oxô Afonjá em Salvador e mesmo se o Vaticano quis saber como foi isso e não entendeu, mesmo se o meu Orixá é Ayrá, recebi dela a condição de Ogã de Iansã.

Quanto aprendizado com os irmãos e irmãs do diálogo ecumênico e inter-religioso e no diálogo intergeracional do qual nasceu o MEL, Movimento de Juventudes e Espiritualidades Libertadoras. Aqui quero salientar a presença na minha vida da querida irmã Rose Fernandes, com a qual aprendo diariamente a arte espiritual do diálogo intergeracional. Desse coletivo, estão aqui nesse momento representando muitas outras pessoas os queridos irmãos e companheiros Hildete Emanuelle e Edward Guimarães.

Por isso, peço a vocês permissão para que eles possam receber esse prêmio junto comigo. Junto com eles, penso que a melhor forma de agradecer a esse sinal de carinho que, hoje, vocês nos fazem, é retomando a reflexão sobre os desafios atuais de fazermos teologia como profecia e profecia inserida na realidade social e política do mundo em que vivemos.

Na realidade, a profecia não é apenas uma entre outras dimensões da fé e da eclesialidade, mas é aquela que herdamos diretamente de Jesus que sempre se apresentou como profeta e viveu seu ministério como profeta do reinado divino no mundo.

Aqui, no começo desse século, no congresso da SOTER que celebrava os 30 anos da Teologia da Libertação, o padre Comblin expressou sua perplexidade pelo fato de que, embora o Brasil e alguns países da América Latina estivessem vivendo momentos novos em termos políticos – com elementos como orçamento participativo e propostas de maior distribuição de renda, a teologia parecia ausente disso. No livro que Luiz Carlos Susin organizou com testemunhos e depoimentos de vários dos grandes teólogos, Jon Sobrino talvez tenha sido o que mais explicitou essa preocupação: Em seu texto, ele afirmava:

O que mais me preocupa na teologia atual é a sua tendência ao Docetismo, isso é, cria-se um âmbito próprio que a distancia e a desentende da realidade real, ali onde se fazem presentes o pecado e a graça. Esse docetismo que, em geral, é inconsciente, pode levar ao aburguesamento e a prescindir dos pobres e vítimas que são a maioria na realidade e a realidade mais flagrante[2].

O padre Comblin propunha que a nossa teologia voltasse a ser profecia, isso é, atualização da palavra de Deus no meio do seu povo. Para isso, ela precisa ser novamente palavra espiritual e, ao mesmo tempo, social e política. Quem analisa os livros do Comblin pode perceber como nos anos  60, os livros são acadêmicos e imensos e pouco a pouco os livros vao se tornando cada vez mais populares e simples. E um dos últimos, a Profecia na Igreja nos interpela sempre até hoje.

Em um de seus livros escrito já há quase 20 anos, Jung Mo Sung conta que, nos anos 80, em um famoso congresso teológico em Montevidéu, Hugo Assman afirmou:

“Se a situação histórica de dois terços da humanidade, com seus 30 milhões de mortos de fome e desnutrição não se converte em ponto de partida de toda teologia cristã hoje, a teologia não poderá aplicar seus temas fundamentais à história concreta. Suas perguntas não serão perguntas reais. Por isso, é necessário salvar à teología (e a fé) do seu cinismo. Porque, realmente, diante dos problemas do mundo de hoje, muitos escritos de teologia se reduzem a um exercício de cinismo”[3].

Pessoalmente cada dia me convenço mais de que o caráter sociopolítico da profecia é vivido não a partir do poder, seja do poder eclesiástico, seja do poder social e político e sim a partir de baixo, isso é, da inserção no mundo do povo empobrecido do testemunho do reinado divino sobre esse mundo[4].

  Graças a Deus, mesmo se somos minoria e Dom Helder Camara diria “minorias abraâmicas” nas Igrejas e no mundo, continuamos firmes como Igreja da Caminhada. Ora, o que constitui a profecia da caminhada é ser reinocêntrica, como foi a profecia de Jesus. Profecia eclesiocêntrica ou a partir da institucionalidade não é profecia e se for, ao menos, não será profecia do evangelho de Jesus. Por isso, a Cristandade não pode ser profética e não convive bem com a profecia. A profecia só pode ser a partir de baixo e das periferias. Mesmo bispos e arcebispos que tiveram certo poder na Igreja, como Dom Helder Camara e Dom Oscar Romero exerceram mais a profecia, quanto mais aceitaram perder o poder eclesiástico. Ficaram isolados, marginalizados nos próprios meios eclesiásticos e  empobrecidos. Todos os títulos e privilégios do cargo não lhes deram segurança ou tranquilidade. Nos anos 1970, Dom Helder Camara foi isolado dentro da própria CNBB e no Vaticano passou anos sem poder ser recebido pelo papa Paulo VI que era seu amigo desde os anos 1950. É só quando se aceita essa “marginalidade” institucional em relação à Igreja e ao mundo que se pode exercer a profecia.

Em 1971, o papa Paulo VI convocou um sínodo dos bispos sobre a justiça no mundo. O tema foi sugerido por Dom Helder que era o bispo que no mundo inteiro mais trabalhava esse assunto. Ele sugeriu o tema, mas não foi eleito como representante do episcopado brasileiro que não votou nele e também não foi convidado pelo papa. Apesar de arcebispo de Olinda e Recife e presidente do Regional Nordeste II da CNBB e ter sido o fundador da CNBB e do CELAM, Dom Helder não foi ao Sínodo e não pode dar nenhuma colaboração a esse.

Só a partir dessa liberdade dada pela profecia, em 20 de novembro de 1981, ele, Dom Helder e Dom José Maria Pires, então arcebispo de João Pessoa, celebraram a Missa dos Quilombos, que o Vaticano ainda estava analisando e que ambos sabiam que seria proibida. E foi na homilia dessa Missa que Dom José Maria Pires não hesitou em afirmar em voz alta e pelos altofalantes da Praça do Carmo no Recife para toda aquela multidão que o ouvia: “ Mais longa do que a servidão do Egito, mais dura do que o cativeiro da Babilônia, foi a escravidão do povo negro no Brasil”. (...) Nesse longo tempo, a nossa Igreja não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los e exterminá-los. A nossa Igreja não estava com o povo negro e parece que só agora começa a estar. Começa a nos querer bem”. (...)  “Chegou o tempo de tanto sangue ser semente e de tanta semente germinar”.

Dom José Maria fala duas vezes em nossa Igreja, mas se identifica não com a hierarquia e sim com os negros escravizados quando diz que a Igreja (ela) começa a nos querer bem... a nós negros e negras. O chão a partir do qual ele falou isso não foi o do poder e sim o da inserção amorosa e diaspórica. Nenhum desses grandes bispos  conseguiu fazer o seu sucessor e a profecia deles deixou de ser a partir da cátedra da hierarquia e passou a ser a partir da marginalidade e de um empobrecimento interior exigente. Um amigo de El Salvador do qual eu não tenho permissão de dizer o nome foi durante anos motorista particular de Monsenhor Romero. Atualmente mora perto de Vitória. Ele me contou que, quando no último ano de vida do Monsenhor, ele o conduzia de carro à casa na qual os bispos se encontravam, Dom Romero lhe dizia: daqui a 50 minutos você abre a porta da sala e me chama dizendo: está na hora do seu médico ou da visita a que vc não pode deixar de ir. Porque mais de 50 minutos, eu não sobreviveria ao sofrimento para mim esse tipo de reunião.

Quando ele me contou isso, eu me lembrei de uma experiência que vivi com Pedro Casaldáliga. Há 20 anos, dois anos antes de se tornar emérito, ele tinha me pedido para pregar o retiro da prelazia e como não tinha dinheiro para pagar o avião de Goiânia a São Félix, ele iria com o padre Geraldo de ônibus noturno naquele domingo entre Goiânia e São Miguel do Araguaia e e ali tomaria o avião da SETA para São Félix. De fato, naquela noite, ele tomou o ônibus junto com o padre, mas na manhã cedo, o padre que tinha adormecido acordou, Pedro não estava no ônibus e ninguém sabia dele. Claro nós ficamos preocupados e só à tarde daquela segunda-feira, ele conseguiu se comunicar e contar o que tinha acontecido. O encontro dos bispos tinha sido tão pesado e doloroso para ele que ele saiu do encontro com febre e com um pouco de desarranjo intestinal que ele sabia ser nervoso. Não disse nada ao padre Geraldo para não falar mal de ninguém e não colocá-lo contra outros bispos. Rezou e tentou dormir. O mal-estar intestinal piorou. Como o ônibus não tinha banheiro, de madrugada, ele foi até o motorista e disse que precisava parar. O motorista parou mas não entendeu que era apenas uma parada rápida. Quando Pedro desceu do ônibus, o motorista foi embora e o deixou na estrada sozinho no escuro da madrugada com febre e com dor intestinal. Só com a roupa do corpo, sem dinheiro e sem documentos. No escuro ele andou na beira da estrada, começou a chover e ele correu para se abrigar em um barraco que ele viu da estrada. Um senhor já de idade abriu a porta, o acolheu, lhe deu uma proteção para se cobrir e um copo de leite quente.. Pedro passou ali o resto da noite e de manhã cedo o homem o levou de carroça até a cidade próxima onde ele pode se comunicar e continuar a sua viagem.

Desculpem contar essas histórias mas é para dizer algo sobre o chão da profecia que não pode ser o chão da Cristandade, o chão do Clericalismo, mesmo o de esquerda.

Nesses dias, vejo irmãos e companheiros nossos que, diante da ação nefasta de pessoas e grupos de direita, se perguntam: Por que a CNBB não condena o Centro Dom Bosco? Por que não declara que tal padre ou tal bispo não é mais católico? E ficam contentes com a notícia de que o Vaticano excomungou o ex-núncio Viganó e o bispo da diocese excomungou o grupo de clarissas espanholas que se proclamam contra o Concílio.

É claro que os companheiros e companheiras da caminhada têm razão ao se sentirem agredidos por esses novos cruzados de um Cristianismo do ódio, da rigidez institucional e da Igreja ligada aos impérios do mundo. Têm razão de desejarem reagir. Mas a reação justa e adequada da profecia só pode ser a própria profecia. Não podemos ceder à tentação de trocar a Cristandade de direita por uma espécie de Cristandade de esquerda que seria uma instituição de Igreja, forte, monolítica e que usa o poder do lado de cá. A profecia nunca virá por esse caminho. Abrir a porta da exclusão é fácil. O difícil será fechá-la.

Esse prêmio que a SOTER me dá nessa noite pode ser visto como uma dessas sementes de profecia que germinam. Profecia de outro modo de fazer teologia que não será a teologia da enxada que há mais de 50 anos o padre Comblin iniciou, mas será a teologia das lives de amizade, da cumplicidade amorosa com os grupos do MST, as comunidades indígenas e os coletivos populares que acompanhamos. Vamos juntar as Teologias sobre a Libertação que os companheiros e companheiras fazem na Academia e são importantíssimas com as Teologias da Libertação que fazemos juntos a partir do acompanhamento das comunidades e grupos populares.

Em um desses dias, alguém colocou no zap um pequeno poema de Clarice Lispector que afirma:

...Vivo de esboços

Não acabados,

Mas equilibro-me

Como posso

Entre mim e eu,

Entre mim e os humanos,

Entre mim e Deus..."  (Clarice Lispector)_

 

[1]MARCELO BARROS. PRÊMIO   SOTER – JOÃO BATISTA LIBANIO. Conferência Proferida em Belo Horizonte. PUC MINAS, no dia 11 de julho de 2024 em ocasião da entrega do Prêmio.

[2] - SOBRINO, Jon. Teología desde la realidad, in SUSIN, Luiz Carlos (Org). O Mar se abriu. Trinta anos de Teologia na América Latina. Porto Alegre: SOTER e São Paulo: Loyola, 2000, pp. 168 – 170.

[3] - ASSMAN, Hugo e MO SUNG, Jung, Deus em nós, São Paulo, Paulus, 2009, p. 12. 

[4] - Cf: COMBLIN, José. A profecia na Igreja. São Paulo: Paulus, 2008, p. 12.

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