A Soter, junto ao Fórum de Associações Científicas de Ciências da Religião, Teologia e Ensino Religioso (FACRETER), enviou, nesta semana, à Presidência do Senado, nota sobre o PL 4.606/2019, feita em parceria com o Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA).
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NOTA PÚBLICA SOBRE O PL 4.606/2019
O Fórum de Associações Científicas de Ciências da Religião, Teologia e Ensino Religioso (FACRETER) e o Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA), juntamente com as entidades acadêmicas que subscrevem esta Nota, vêm a público manifestar sua inquietação quanto à aprovação do PL nº 4606/2019, de autoria do Deputado Pastor Sargento Isidório (AVANTE/BA), aprovado no dia 23 de novembro do corrente ano, pela Câmara Federal, e encaminhado ao Senado, a qual dispõe que:
Fica vedada qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento em seus capítulos ou versículos, sendo garantida a pregação do seu conteúdo em todo território nacional. As expressões “alteração”, “edição” e “adição” dos textos da Bíblia Sagrada, vedadas no projeto de lei, apontam para evidente confronto com a Constituição Federal, uma vez que a diversidade dos textos bíblicos em todo o mundo e no correr dos tempos, fruto de estudos e pesquisas religiosas e científicas, por si só, já traz em si a contínua possibilidade de sua edição ou adição.
Suprimir essa possibilidade significaria excluir a atividade de estudo e pesquisa no campo dos estudos teológicos, históricos, literários, das ciências da religião e de outras áreas e/ou disciplinas afins, violando o direito à livre manifestação e expressão e autonomia científica. Encontra expresso óbice no art. 5º nº IV, V, IX e XIV da Constituição Federal. Restariam prejudicadas, pois, não apenas o acesso à informação, como também a liberdade de consciência e crença, a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.
Recorde-se, ainda, que o Art. 19, Inciso I, da Constituição Federal, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, de estabelecerem cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Cumpre ressaltar que, no âmbito das ciências teológicas, as traduções são sempre interpretações. São feitas escolhas tanto na interpretação das palavras do texto original (até onde o conhecemos), quanto na formulação no vernacular português que procura ser compreensível ao seu público contemporâneo. As escolhas, outrossim, não poucas vezes refletem as preferências doutrinárias das pessoas que traduzem.
Nesse sentido, cabe perguntar: a qual texto bíblico se refere o projeto? A própria justificativa do Deputado já menciona existirem dois tipos de Bíblia, a “Evangélica nos seus 66 livros com 1.189 capítulos e 31.102 versículos” e a “Bíblia Católica com seus 73Livros e 1.330 Capítulos e 35.527 versículos”. Não foram consideradas, por exemplo, as Bíblias das Igrejas Ortodoxas do Oriente, que possuem mais livros do que as aqui mencionadas. Outrossim, há que se considerar que a imensa maioria da população não lê a Bíblia nas línguas originais, hebraico, aramaico, e grego, mas numa tradução para o português, sendo que há uma variedade considerável destas ([tradução de João Ferreira de] Almeida Corrigida e Fiel, Almeida Revista e Atualizada, Bíblia de Jerusalém, Tradução Ecumênica, Bíblia da CNBB, Bíblia de Referência Scofield etc.).
Não dispomos dos originais de nenhum dos livros contidos nas diversas Bíblias.Pesquisadores(as) do mundo inteiro, inclusive do Brasil, vêm trabalhando sobre os mais de 12.000 manuscritos existentes do texto bíblico que compõem estes livros, capítulos e versículos, para chegar à sua versão mais original possível. A reconstrução deste “original” não é fácil e é objeto de controvérsias. Alguns dos manuscritos contém tão somente um pequeno pedaço do texto bíblico, outros são coletâneas completas, sendo as mais antigas que conhecemos hoje, em língua grega, datadas do século IV, portanto longe do momento em que foram escritos. O mais antigo manuscrito completo em hebraico do qual dispomos até hoje data do século XI apenas. Dos textos “originais” temos apenas cópias, e cópias de cópias, em hebraico (a maior parte do Antigo Testamento, algumas partes foram escritas em aramaico) ou grego (Novo Testamento), além da enorme variedade de traduções, conforme já foi mencionado.
Nesse sentido, perguntamos: a “Bíblia Sagrada”, objeto do PL em pauta, referir-se-ia a qual língua e a qual versão?
A tradução grega do Antigo Testamento, a chamada Septuaginta (sigla LXX), foi muito usada e contém justamente os livros adicionais que compõem hoje a Bíblia “Católica”, enquanto a Bíblia “Evangélica” segue a versão hebraica do Antigo Testamento, utilizada pelos rabinos do judaísmo e que não incluiu livros escritos originalmente em grego. Tratase dos livros de Judite, Sabedoria, Tobias, Sirácida, Baruc, 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos feitos em grego aos livros de Ester e Daniel e ainda a oração de Manassés. Já na igreja antiga não houve consenso a respeito destes livros chamados por Lutero de “apócrifos”, e não se considerou parte da Sagrada Escritura, ainda que ela fosse útil. Mesmo na Igreja Católica de hoje estes textos não são de uso costumeiro – não constam, por exemplo, dos roteiros para as homilias dominicais.
O trabalho dos pesquisadores faz com que, por exemplo, o versículo 37 do capítulo 8 do livro de Atos dos Apóstolos seja colocado, na maioria das edições da Bíblia, entre colchetes com uma explicação em nota de rodapé. Este versículo é uma adição posterior que não consta nos manuscritos considerados os mais importantes. Assim, a Bíblia da CNBB anota na p. 1511: “Uma glosa, atestada nas antigas versões, acr. [acrescenta]: Filipe disse: ‘Se crês de todo o coração, é possível’. E ele respondeu: ‘Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus’. N [o texto considerado normativo, ou seja, mais próximo ao original, pela pesquisa bíblica] omite.” Provavelmente cristãos das primeiras comunidades entenderam ser irritante que o eunuco etíope, figura central do texto de Atos 8,26-40, junto ao apóstolo Felipe, seja batizado sem confissão de fé (lendo os versículos 36 e 38 sem a inserção de um versículo 37) e, portanto, inseriram um versículo de acordo com a sua liturgia do batismo. Pergunta-se: o PL 4606/2019 seria violado por este acréscimo, feito nos primeiros séculos da nossa era? Quem poderá e deverá decidir sobre uma inserção, teologicamente justificável? O Congresso Nacional? Os tribunais? Ou, como é de direito, a teologia e as religiões?
Vale, ainda, exemplificar com a tradução do nome da apóstola Júnia, mencionada na carta de S. Paulo aos Romanos 16,7. Por muito tempo a tradução foi “ser de um homem, Júnias” – o que é gramaticalmente possível, mas seria um nome praticamente desconhecido na Antiguidade. Por isso, a Bíblia da CNBB, na p. 1559, coloca, com direito, o nome “Júnia” no texto e anota em rodapé: “Júnia, tlv. [talvez] Júnias”. Seria esta uma “alteração do texto”, conforme o PL 4606/2019? Fato é que a Bíblia, enquanto documento histórico e literário, inclui-se na dinâmica das descobertas arqueológicas e históricas, sempre estando passível de sofrer alterações pela descoberta de novos manuscritos bíblicos, mais antigos do que os que se conhecia, como aconteceu na descoberta dos textos de Qumran, nas cavernas na beira do Mar Morto, em 1948.
Conforme procuramos esclarecer, o teor do PL 4606/2019 é inadequado e fere o princípio hermenêutico próprio das ciências teológicas e das religiões. Caso aprovada, dará causa a enormes dificuldades de interpretação, com conflitos sem fim, tanto pela diversidade de versões, línguas e interpretações, quanto pela ausência de uma instância que poderia decidir com propriedade e legitimidade sobre tais questões.
Pelas razões acima explicitadas, solicitamos, fortemente, que o Senado não aproveesta lei.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM)
Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (ABEJ)
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS)
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS)
Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR)
Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR)
Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC)
Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB)
Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC)
Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações
Públicas (ABRAPCORP)
Associação brasileira de pesquisadores em Cibercultura (ABCIBER)
Associação Brasileira de Professores de Língua Inglesa da Rede Federal de Ensino
Básico, Técnico e Tecnológico (ABRALITEC)
Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO)
Associação Brasileira dos Professores de Italiano (ABPI)
Associação Brasileira para Pesquisa e História das Religiões (ABHR)
Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB)
Associação Latino Americana de Literatura e Teologia (ALALITE- Seção Brasil)
Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil)
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM)
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP)
Associação Nacional de Pós graduação em Filosofia (ANPOF)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE)
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE)
Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER)
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC)
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM)
Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM)
Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER)